Gustavo T. Gazzinelli
Os quarenta anos da Campanha da Fraternidade
são celebrados em 2004 com água. Dá para se perceber
a crescente valorização da água na vida de toda a humanidade.
A água inspira a fraternidade. A água une na alegria. Mergulhados
nela, o nosso estado de natureza se manifesta, e a diluição
da mascar social permite a aproximação. Só a colheita
e a reunião à mesa ensejam tanta comunhão, como os folguedos
à água. Assim, água é bem que faz bem aos comuns,
partícipes que somos de uma comunidade hidráulica. A água
é terapêutica para o corpo e o espírito: “nos mesmos
rios entramos e não entramos, somos e não somos”. Água
é sonho, elemento purificador.
Em 2003, Belo Horizonte começou a viver capítulo angustiante
de sua história. A MBR – Mineradoras Brasileiras Reunidas -,
que nos roubou bom pedaço da Serra do Curral, está tramitando
no Município e no Estado pedidos para abrir a Mina de Capão
Xavier, à montante de quatro mananciais que abastecem a cidade.
A jazida de Capão Xavier localiza-se perto do bairro Jardim Canadá,
de Nova Lima, na saída de Belo Horizonte para o Rio de Janeiro. Situa-se
no extremo norte da Serra da Moeda, onde se dá o belíssimo encontro
com a Serra do Curral, conformando uma das quinas do Quadrilátero Ferrífero.
A serra da Moeda divide o vale do Alto Rio das Velhas da bacia do Rio Paraopeba,
constituindo a parede oeste do Quadrilátero Ferrífero. A Serra
do Curral é o limite norte do Quadrilátero.
Capão Xavier, além de conter ferro (sob forma de hematita e
itabirito), é um importante aqüífero, pertencente ao chamado
Sinclinal da (serra da) Moeda. O sinclinal é uma estrutura resultante
de movimentos tectônicos, isto é, de choques e compressões
de placas da crosta terrestre, que resultaram em sedimentos contínuos
em forma de um V, em perspectiva – como uma quilha de barco –,
sendo a base inferior dessa formação impermeável. No
caso do Quadrilátero Ferrífero, os sinclinais estão recheados
de hematitas e itabiritos, que por serem muito porosos permitem grande penetração
e acúmulo de água. A estrutura impermeável do sinclinal
torna-o, assim, um reservatório extraordinário. Estima-se volume
de águas subterrâneas do Quadrilátero Ferrífero
em torno de cinco bilhões de metros cúbicos – sendo o
sinclinal da Moeda, articulado com o Dom Bosco (a lateral ao extremo sul do
Quadrilátero), o maior da região.
A atividade da mineração de ferro implica no rebaixamento do
lençol freático, durante o período da lavra. A tendência
das nascentes próximas é perderem muita água e até
secarem. O problema de Capão Xavier é que a jazida acumula boa
parte das águas que nascem com os nomes de ribeirões Mutuca,
Fechos, Catarina e Barreiro. Fechos e Mutuca são as principais fontes
do Sistema Morro Redondo, que abastece, por gravidade, a região sul
de Belo Horizonte – do Aglomerado da Serra ao Luxemburgo. O Catarina
abastece os bairros Jardim Canadá, Retiro das Pedras (de Nova Lima
e Brumadinho) e, juntamente com o ribeirão Barreiro, parte da região
Barreiro e a indústria Vallourec & Mannesmann.
A forma precipitada – sem consulta aos usuários e com relevantes
falhas processuais – com que os poderes públicos estão
aprovando essa mineração vem demonstrar o risco da “intromissão
estranha” nas questões ambientais e no aparelho do Estado. Não
à toa, o legislador mineiro elaboraria, em 1992, a lei 10.793, vedando
a instalação de atividade extrativa mineral e outras consideradas
poluentes, em bacias de mananciais de abastecimento público que comprometessem
em níveis mínimos a quantidade e qualidade da água.
Foi pensando no domínio público das águas que o Professor
Alfredo Valladão elaborou a minuta do Código das Águas,
em 1907. O decreto, instituindo o Código, só veio a se tornar
realidade em 10 de julho de 1934. A autoridade pública fez nascer no
mesmo dia o Código de Mineração. O Código das
Águas, decreto 24.643, veio portanto, à história administrativa
brasileira, segurando o calcanhar do Código das Minas, decreto 24.642.
Quis assim o legislador sinalizar que a atividade econômica teria um
limite? É bem provável. Como havia dito Alfredo Valladão,
na Exposição de Motivos do Anteprojeto do Código de Águas,
“na ordem de preferência quanto aos usos das águas [...]
tem o primeiro lugar – o uso para as primeiras necessidades da vida”,
grifou.
Entre as mais complexas elaborações humanas, situa-se a cidade.
Assim, para escolha do sítio que receberia, a partir de 1897, a nova
capital de Minas, observou-se, em primeiro e segundo lugares, “as condições
naturais de salubridade” e os mananciais, “não só
quanto ao volume e qualidade das águas, mas também quanto à
altura disponível”. A perspectiva de captação do
manancial do ribeirão Macacos, apontada em 1893 no Relatório
de Aarão Reis, só se concretizaria nas décadas de 40
e 50 – das administrações municipais JK a Celso Mello
de Azevedo. Em 1942, Juscelino comunicava estar em estudos a aquisição
da bacia do Mutuca “para proteger-se de intromissão estranha”.
O sociólogo Fernando Correia Dias, em encontro do Clube de Diretores
Lolistas, em 1964, para discutir a falta de água em BH, já afirmava:
“A abundância e a boa qualidade de água servida às
comunidades representam índices de progresso técnico e de civilização.
[...] Na medida em que, num país como o Brasil, vai-se difundindo um
padrão de cultura urbana moderna, as massas vão tomando consciência
de que devem participar dos bens culturais e comerciais, digo materiais. O
fenômeno da participação - na vida cívica e política,
no consumo de tipo urbano, nas atividades culturais, etc. - é talvez
o mais significativo de nossa época, do ponto de vista sócio-cultural.
Não é necessário salientar a evidência de que a
participação em bens da natureza, como a água, [...]
é tranqüilamente encarada por todos como direito elementar, como
exigência irrecusável do bem-comum”.
Quando se emitem discursos oficiais em defesa da recuperação
da bacia do Rio de São Francisco, é curioso que autoridades
públicas estaduais e municipais em Minas fechem os olhos para os riscos
impostos, pela mineração, aos aqüíferos à
montante do grande Vale. Afinal, é a região do Quadrilátero
Ferrífero, com seus sinclinais, a grande contribuinte do alto Rio das
Velhas e de parte significativa das águas que abastecem o alto Rio
Paraopeba – dois dos principais afluentes do São Francisco.
A ameaça aos mananciais do Quadrilátero Ferrífero está
configurada, com a crescente pressão dos interesses exportadores de
minério de ferro. É neste contexto que foi criado o Movimento
Capão Xavier Vivo, que questiona um projeto de mineração
sobre área de recarga de mananciais de abastecimento público
ao sul da região metropolitana de Belo Horizonte. Desde agosto de 2003,
com representações ao Ministério Público Estadual
e ao Federal, e em dezembro de 2003, com Ação Popular, estão
sendo questionados atos administrativos do Governo de Minas e da Prefeitura
de Belo Horizonte, autorizando o projeto minerador sobre as bacias dos mananciais
públicos.
Diante da pressão da empresa Minerações Brasileiras Reunidas
S/A – MBR - (que tem como maior acionista a Cia. Vale do Rio Doce),
da ineficácia fiscalizadora das procuradorias públicas e da
insensibilidade ambiental dos governos locais, a autorização
ao empreendimento minerário já obteve quase todas as licenças
necessárias à sua implementação. Já obtiveram
a Licença Prévia (LP), a Licença de Instalação
(LI) e a Licença de Operação (LO).
Acreditamos que somente a pressão da sociedade, somada à efetiva
isenção dos poderes judiciário e legislativo, possibilitarão
a reversão desse quadro. Os ambientalistas e defensores da água,
bem de uso comum do povo, não podem se intimidar perante o quadro de
desrespeito legal e instabilidade jurídica que ameaçam a proteção
e integridade de um de seus patrimônios mais sagrados.
Exemplos não nos faltam das atitudes e reflexões que, em passado
relativamente recente, se afirmaram para a preservação dessa
fundamental fonte de vida para as gerações do futuro. Façamos
a nossa parte.
Gustavo T. Gazzinelli
email: Gustavo@capaoxaviervivo.org
– Jornalista, membro do Movimento Capão Xavier Vivo, um dos signatários
de uma Ação Popular contra a MBR, Estado de Minas, FEAM, COPAM
e Prefeitura de Belo Horizonte.
Uma síntese desse artigo foi publicada no Jornal CARRILHÃO, Ano 04, n. 25, p. 04; e no Jornal de OPINIÃO, 22 A 28/03/2004, n. 773, Ano 16, p. 13.
Movimento Capão
Xavier VIVO
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